quinta-feira, 21 de maio de 2009

: Um palco que necessita narrar ::

O teatro, como acontecimento, realiza-se num encontro singular entre ator e espectador, um diante do outro no tempo e no espaço. Entretanto, de que matéria pode ser feito o verbo que une esses dois elementos imprescindíveis da representação? Tradicionalmente, o texto teatral se configura como dramático, oriundo do aristotelismo e desenvolvido consistentemente pelo drama burguês a partir do século 18. Sua matriz constitui-se de diálogos que impulsionam a ação dramática, concentrada nas relações intersubjetivas, exclusivamente. O tempo do drama é sempre o presente e o enredo deve desenrolar-se diante dos olhos do espectador, como se estivesse sendo re-apresentado naquele instante, obedecendo, à priori, às leis das unidades de tempo e lugar. O dramaturgo encontra-se ausente no texto, sua voz está travestida nas vozes dos personagens a quem concede o espaço de fala. A platéia configura-se como contempladora, observadora, alijada do mundo da representação, à qual assiste distanciada, passiva, envolvendo-se emocionalmente com o enredo representado diante de si. Dessa forma, a linguagem dramatúrgia no Ocidente desenvolveu-se e estabeleceu-se como referência literária, distinta do romance e da poesia, a serviço de uma representação de uma realidade que podia ser transcrita nesses moldes.

O mundo, por outro lado, expandiu-se, complexificou-se. A modernidade, a partir do século 19, começava a exibir seus novos inventos tecnológicos, a expansão do comércio e da indústria, o desenvolvimento dos grandes centros urbanos e dos transportes, cinema, o império capitalista, a sociedade de massa, os meios de comunicação, máquinas, guerras, regimes totalitários. O mundo e os seres humanos a serem representados pelo palco já não eram mais os mesmos: as relações intersubjetivas enfraqueceram-se diante das relações sociais, o anonimato do indivíduo e o esgarçamento das relações interpessoais, entre outros, fizeram com que o teatro se percebesse à deriva, urgindo pela busca de novas formas de representação. De um lado, o drama já sinalizava no fim do século 19 mesmo sinais de crise, a partir da inserção, inicialmente sutil, de elementos épicos no conteúdo e na estrutura do drama convencional. Nessa época, o romance literário, por sua vez, apresentava melhores soluções para representar as questões da vida humana individual, pois, segundo Silvia Fernandes, dispunha de dispositivos narrativos mais eficientes. Assim, das peças em crise, que inclui as de Tchékhov, Strindberg, Hauptmann e Maeterlink, segundo Peter Szondi, a linguagem dramática iniciou um processo de reconfiguração, assumindo recursos narrativos, até chegar, por exemplo, no assumidamente épico teatro de Brecht, no século 20. Seguiram-se Müller, Wilder, entre outros, pondendo-se perceber a impossibilidade do drama burguês de abarcar esse novo admirável e complexo mundo. A partir da segunda metade do século 20, a dramaturgia, denominada contemporânea, não se pauta mais por generalizações. A diversidade de formas e conteúdos híbridos, distintos, é seu denominador comum. De um lado, um palco que deseja narrar para expressar-se rompe os limites da caixa cênica, configura novas relações entre ator e espectador, amplia as possibilidades sígnicas dos elementos cênicos, além de oferecer uma multiplicidade de matrizes textuais (romances, contos, novelas, notícias de jornal, biografias), não esquecendo de que há também, paralelamente, um palco poético, lírico, imagético, performático etc.

Acompanhando essa evolução, mas propondo um salto significativo, na transição do século 20 para o século 21, no Brasil, há a explosão de uma linguagem singular que reestabelece as fronteiras e interseções entre palco e literatura: o romance-em-cena, criado por Aderbal Freire-Filho, cujos espetáculos tornaram-se meu objeto de tese de doutoramento na Unirio, sob orientação da Prof. Dra. Maria Helena Werneck. Aderbal, em entrevista a Fábio Gomes, define a proposta do romance-em-cena como o jogo da ilusão teatral levado ao paroxismo: o discurso em terceira pessoa e a representação em primeira. Não há em cena a figura do narrador, embora a narração se faça presente no discurso, pelo fato do romance ser mantido na íntegra. As narrações referentes aos personagens são ditas pelos atores que os interpretam. O passado e o presente se confundem em cena. Apesar de não haver adaptação literária no romance-em-cena, não se pretendendo transformar narrativa em diálogo, Aderbal se apropria da linguagem teatral para fazer o que ele denomina de adaptação cênica do romance. Trata-se de um trabalho de direção, enquanto dramaturgia da encenação, e das opções necessárias a serem feitas, no sentido de transpor os códigos literários para os recursos teatrais.

São algumas das reflexões que têm norteado a pesquisa da Cia. Pierrot Lunar desde o ano passado, quando foi vencedora do Prêmio Cena Minas, cuja continuidade se dá agora no processo de montagem teatral do romance "Sexo", de André Sant'Anna. O projeto, já em construção, foi vencedor do Prêmio Myriam Muniz, da Funarte, com patrocínio da Petrobrás. Nosso desafio é manter a escritura da linguagem do romance, experimentando vários modos de fazer narrativo na cena, de teatralizar esse texto literário, de trabalhar o ator-narrador, ou "ator-rapsodo" segundo conceito de Luiz Arthur Nunes. Tais reflexões também, originalmente, foram escritas para o blog do Fórum "Palavra e Teatro", da Cia. Clara, do qual participe a convite da diretora Cida Falabella.

Juarez Dias

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Folha de São Paulo, 4 mai 2009

ANÁLISE

Augusto foi nosso Brecht

ADERBAL FREIRE-FILHO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O TEATRO brasileiro no mundo tem um nome: Augusto Boal. Vá a Amsterdã, entre numa livraria e peça um livro de Boal. Você não vai conseguir ler, a menos que saiba holandês. Boal está traduzido muito além do espanhol, do francês e do inglês. Mas não estou aqui para falar dos livros, quero falar do homem. E começo ouvindo esse homem falando, o ritmo da fala, a música que vai juntando frases harmoniosamente, com um pensamento claro, a cadência das palavras, uma respiração buscada no fundo do peito para uma frase mais e, depois, quando o raciocínio se completa, um volteio e um final em que os temas se fecham, com extraordinária clareza.
Estou ouvindo uma explicação que me deu sobre um seminário seu com atores da Royal Shakespeare Company. Ali, o teatro ainda tem a força dos seus melhores tempos -se você abre o programa de uma peça, vai encontrar duas páginas com os nomes de quem faz aquele teatro existir, começando com os de sua patrona e de seu presidente, Sua Majestade, a Rainha e Sua Alteza Real, o Príncipe de Gales, indo até os contrarregras e o pessoal da maquiagem, passando pelos atores, o centro de tudo. Isto é, ali está a Inglaterra inteira.
Pois estava claro para a companhia que seus atores precisavam conhecer mister, dom Augusto Boal, artista capaz de fazer um teatro mais aberto para a sociedade do que qualquer outro, capaz de transformar o espectador em ator. E levaram Boal para conviver com eles, treinaram suas técnicas, sabendo que assim chegariam mais perto ainda do povo, como chegava o cidadão William Shakespeare.
E digo cidadão pensando na frase de Boal, dia desses, na Unesco: "Cidadão não é aquele que vive em sociedade, é aquele que a transforma". O Alcione Araújo me telefona, "não vou esquecer meu diálogo com o Boal para uma revista, à propósito da sua autobiografia". Geraldinho Carneiro me escreve, "as célebres façanhas poéticas e conceituais do Boal, o teatro invisível, o teatro do oprimido". Era preciso muitos fôlegos, por trás da voz mansa, para ter tanta presença no teatro do Brasil, do mundo, do seu tempo, de todos os tempos. Pode-se dizer muito dele.
Prefiro escolher nesse abraço a lembrança de uma ação nacional, que talvez não tenha muita valia na sua cotação internacional, mas, céus, como enriqueceu o teatro brasileiro. Em meados dos anos 50, Boal organiza o seminário de dramaturgia do Teatro de Arena, marco da história da nossa cena, e forma uma das nossas mais brilhantes gerações de autores, em que despontam Oduvaldo Vianna Filho, Gianfrancesco Guarnieri.
Nunca me esqueci da sua revolução na América do Sul, o teatro brasileiro moderno nascendo, sua geração botando o dendê no caldo que Nelson Rodrigues começara a preparar. E "Arena Conta Zumbi", Tiradentes, outros brechts pelo mundo, me lembro de Santiago García, da Colômbia, e ouço Eugenio Barba dizendo "é o Brecht deles", foi nosso Brecht o Boal.
Nos encontramos pela última vez na sala de espera do consultório do Flávio, para tratar de nossos corações, era véspera da sua viagem a Paris, onde receberia o título de embaixador mundial do teatro. E me disse, "na volta vamos tomar um vinho lá em casa".
Não sabíamos que entre esse encontro e o vinho prometido "ia passar o famoso rio Aqueronte, o insuperável". Mas imagino que, ao lado de Cecília, tua querida e admirável companheira, a única voz que ouço te chamar de Augusto, diante do Arpoador, visto da janela do teu acolhedor apartamento, tomas esse vinho, imortal Augusto Boal.

ADERBAL FREIRE-FILHO é diretor de peças como "Apareceu a Margarida", de 1973, e "As Centenárias", em cartaz em São Paulo