quinta-feira, 23 de abril de 2009

Crítica/"Sexo e Amizade" – Folha de São Paulo, 09 fev 2008

Publicada na Folha de São Paulo a crítica sobre o livro "Sexo e amizade", onde está publicada a novela "Sexo", origem da nova montagem da Cia. Pierrot Lunar

Crítica/"Sexo e Amizade" – Folha de São Paulo, 09 fev 2008

Sant'Anna leva crise de valores à literatura

MARCELO PEN
CRÍTICO DA FOLHA

Lançada em 1999, a novela "Sexo", de André Sant'Anna, ajudou a consolidar a reputação do autor como um dos mais talentosos e originais de sua geração. O texto foi reeditado neste volume, ao lado de novas produções, o que nos ajuda a entender a trajetória particular do ficcionista. "Sexo" arma-se por meio de frases diretas, sem rufos, e sentenças de tom e sintaxe monocórdios. Em vez de fazer uso de pronomes, por exemplo, o escritor repete o clichê com que identifica o personagem: "A enxaqueca da Gorda Com Cheiro de Perfume Avon só passava quando a Gorda Com Cheiro de Perfume Avon tomava Aspirina importada dos Estados Unidos". A ação se reduz a banalidades do cotidiano, anunciadas de alguma forma pela música ordinária tocada no elevador onde se acham várias dessas figuras na cena de abertura. Mesmo os episódios e pensamentos sobre o sexo soam, nesse contexto, alienado, prosaicos, frios, destituídos de qualquer traço de humanidade. O objetivo, sem dúvida, é satírico. A leitura torna-se difícil, não porque o texto seja complexo, mas porque sua simplicidade asfixiante e o emprego recorrente da repetição produzem no leitor o mesmo "tedium vitae" que anima (ou desanima?) os personagens. Caracterização dos tiposMuita coisa mudou nos procedimentos de Sant'Anna desde então, embora o cerne existencial, ou ausência dele, mantenha-se de lá para cá. Os estereótipos sociais, por exemplo. O clichê dos epítetos transfere-se agora para a caracterização dos tipos, facilmente identificáveis: o empresário do Audi vermelho, a mulher bonita, a produtora de TV. Cada um deles, como que criado em estereotipia, reproduz um discurso igualmente estereotipado, em geral preconceituoso e de viés reacionário. Cada um elege um ou mais antagonistas, contra o qual vitupera: o povo, os comunistas, a mulher (que dirige), o maconheiro, o intelectual, o hippie etc. Esses discursos se manifestam através do já consagrado método do fluxo de consciência. Esse monólogo interior a um tempo revela o personagem e estampa sua limitação. Como em "O Importado Vermelho de Noé", o extraordinário conto que inaugura o volume, a torrente de chavões também os afoga -até literalmente. De onde vem essa linguagem vazia, essa opacidade, essa tipificação que André Sant'Anna representa e desmonta com idêntica virulência? Uma dica parece vir de "Sexo", quando o narrador explica que determinada revista se destina a "adolescentes do sexo feminino, das classes B e C+, virgens, que usam roupas de grife". O perfil teria sido pelo departamento de mídia de uma agência de publicidade. Se nossa sociedade se reduz a estatísticas e perfis para uso de empresas de propaganda, que assim ajudam seus clientes a vender mais produtos, que dizer dos indivíduos, os (digamos) compradores da revista ou o leitor dessa resenha? Nas fábulas de Sant'Anna, esse discurso viciado vicia e corrompe, transforma os seres humanos em seres quase humanos: gente sem substância. Gente que não é gente, como o personagem de "A Lei", que se define como "primeira pessoa pós-moderna", ou seja, uma figura do discurso. A crise de valores, aparentemente, já atingiu a literatura.

SEXO E AMIZADE
Autor: André Sant'Anna
Editora: Companhia das Letras (288 págs.)
Avaliação: ótimo

Nosso autor

André Sant’Anna é músico, escritor e roteirista de cinema, televisão e publicidade. Contra-baixista e compositor, formou o Grupo Tao e Qual entre 1980 e 1990, se apresentando em diversas cidades brasileiras. Participou da Coluna Voadora “Eu não Prestes, mas eu te amo”, do Circo Voador, que atravNegritoessou o Brasil, do Rio de Janeiro a São Luis do Maranhão. Dirigiu e atuou nos espetáculos performáticos “Junk Box – Uma Tragicomédia nos Tristes Trópicos”, baseado na obra de Sérgio Sant’Anna; “Quampérius”, baseado na obra do poeta Chacal; “Deus é Bom – O Engarrafamento” de própria autoria. Em Basel, Suíça, escreveu a peça musical “As 12 Trutas da Basiléia”, baseada no “Quarteto de Trutas” (Die Forelle), de Franz Schubert, para a performance do artista plástico René Schlittler. Compôs a trilha sonora para a performance de “O Enterro da Classe Média” do poeta Sebastião Nunes. Para o cinema, compôs as trilhas sonoras dos curta-metragens “Vaidade” e “ A Verdadeira História Trevadero W. – Artista Plástico – Tao e Qual Ela Me Foi Contada” de Vicente Amorim e “Antologia Mamaluca” de Sebastião Nunes.
Dirigiu e compôs a trilha sonora de “Nove”, sobre o massacre do Pavilhão 9 do Carandiru; roteirizou e dirigiu “Urubucamelô”. Para teatro, escreveu “O Jogo de Todas as Coisas que Há”. Foi correspondente do Caderno Idéias do Jornal do Brasil, em Berlim, na cobertura da reunificação alemã. Foi roteirista do programa “Muvuca”, com Regina Casé, Rede Globo.
Publicou os livros “Amor”/Edições Dubolso/1998; “Sexo”/7Letras/1999 e Edições Cotovia/Portugal/2000; “Amor e Outras Histórias”/Edições Cotovia/Portugal/2001; “O Paraíso É Bem Bacana”/Companhia das Letras/2006. Teve o conto “O Importado Vermelho de Noé” incluído na antologia “Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século”/Editora Objetiva/2000 organizada por Ítalo Moriconi. Participou da antologia “Geração 90 – Os Transgressores” – Editora Boitempo/2003, além de colaborar em revistas como “Ácaro”, “Medusa”, “Suplemento Literário de Minas Gerais”, “PS:SP”, “Elle”, “Ficções”, “Trip” entre outras. Participou da antologia de autores brasileiros “Sex’n’Bossa, da editora Mondadori / Itália.

Assista entrevista com André Sant´anna